sexta-feira, 5 de abril de 2019

A Argentina e os negros

A maneira pejorativa que os argentinos usam a palavra negro nunca, jamais, em nenhuma dimensão da Terra, vai deixar de me incomodar profundamente, mas acho que depois de quatro anos morando aqui eu finalmente entendi como funciona sua visão sobre a questão racial. Tudo começa quando você compreende a relação dos argentinos com os negros: ela praticamente não existe. 
 Os argentinos (e quando digo “os argentinos” estou supondo que você sabe que não falo de 100% da população do país) não conhecem negros. Para eles, há dois tipos: os “negros afro”, que são brasileiros, norte-americanos ou haitianos refugiados, e os “morochos” ou morenos, que são os que têm ascendência indígena e os que no Brasil são classificados como pardos. 
Na Argentina, como sabem, não há tantos “negros afro”, mas há muitos “morochos”. Os argentinos até sabem que aqui também houve escravidão, igualzinho no Brasil, mas não têm muita ideia de por que no Brasil há tantos negros e aqui não. Quase ninguém fala sobre o que aconteceu com a população negra argentina em algum momento da história. (Spoiler: eles foram usados como soldados nas guerras da Independência e do Paraguai, os que não morreram ali, morreram de febre amarela, os que sobreviveram se miscigenaram). 
De volta a questão da pejoratividade, os argentinos costumam usar a palavra negro como sinônimo de algo que está mal, algo sujo e errado. Se um argentino vê uma pessoa jogando lixo no meio da rua, essa pessoa é, adivinhe, um negro, ainda que seja um chinês ou um loiro descendente direto de europeus. Não ajuntou o cocô do cachorro? Negro sujo. Roubou um celular no trem? Negro ladrão. Fez um trabalho mal feito? Negro preguiçoso. Quando você diz que o comentário é racista - e eu já fiz isso algumas vezes - a resposta é sempre a mesma: “mas eu não estou falando da cor da pele”, e a partir de aí se torna bastante difícil fazer com que entendam o significado do que dizem. 
Ano passado, um famoso apresentador de televisão daqui brigou com a filha e os sites de fofoca só falavam nisso. Em um momento chegaram a publicar um áudio de Whatsapp que ele mandou para a filha. O áudio dizia o seguinte: 
"(...) No estudiás, no hiciste un carajo. Vas a esa provincia de mierda (Córdoba) con esa gente de mierda, todos ladrones, delincuentes, negros". 
Foi um escândalo. As manchetes do dia eram “Jorge Rial ataca Córdoba em áudio enviado à filha”. Ninguém nunca, jamais, em nenhum momento, nenhum jornalista, nenhum comentarista de Facebook deu importância ao que realmente importava. A palavra negro ali era somente mais um xingamento proferido à província de Córdoba e foi encarada como tal. Ninguém achou importante chamar atenção ao fato de que ela estava sendo usada como insulto, porque é o normal. Aqui negro é um insulto e ninguém discute essa questão. Nesse dia eu só consegui pensar em como seria se isso tivesse acontecido no Brasil, onde há sim racismo, mas também tem muita gente disposta a combatê-lo. 
É complicado conviver com essa mentalidade, mas não acho que seja impossível mudá-la se realmente houvesse gente com voz disposta a fazer isso. Esse tipo de atitude, no caso da Argentina, tem muito mais a ver com ignorância do que com racismo em seu estado puro. Um prova disso é algo com que me deparei um pouco antes do episódio do apresentador de televisão. 
Uma blogueira de um dos jornais mais importantes do país publicou um texto falando sobre como era ser mãe de uma menina negra na Argentina e todas as bobagens que escutava constantemente. A blogueira era branca e o pai da menina um africano que ela conheceu em uma viagem havia alguns anos. Um comentário de uma leitora me deixou pasma. Dizia algo como “Mas por que essa mãe diz que a criança é negra? É tão linda a menina”.
 Veja bem, a mãe disse que a criança é negra porque a criança é… negra. A leitora em nenhum momento relacionou a palavra negro à cor da pele da menina, porque ela passou a vida toda escutando que negro é um insulto, sinônimo de algo feio e sujo, então simplesmente não entendia como uma criança tão linda poderia ser chamada de negra, e ainda por cima pela própria mãe. 
Não acho que ignorância justifique certas atitudes, mas me deparar com a “ingenuidade” dessa senhora branca serviu para eu me dar conta de como realmente funciona a cabeça da maioria das pessoas daqui.  
De maneira geral o que se entende - ou o que eu entendo - é que eles não têm problemas com os que eles chamam de “negros afro”. O maior problema dos argentinos - aqueles que são efetivamente racistas - é justamente tentar diferenciar “os tipos de negros”. E os negros que eles detestam são os “morochos”, principalmente se são pobres e moram em alguma das villas onde muitos sonham em jogar uma bomba como solução para acabar com a violência no país.

Um comentário:

  1. Acompanho seus escritos desde "As Cucas e as Tortas" e já comentei uma vez que adoro o que você escreve.

    Mas essa postagem é sensacional. Vou demorar um pouco para absorver.

    Parabéns! E continue escrevendo, por favor.

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